Deborah Colker estreia espetáculo inspirado em poema de João Cabral
Treze bailarinos cobertos de lama e uma coreografia que explora o chão. O palco é nu, adornado nas laterais por gaiolas de madeira. A luz é, boa parte do tempo, baixa, para não eclipsar a projeção do filme dirigido por Deborah Colker e Cláudio Assis que, numa imensa tela ao fundo, dialoga com a cena. “Cão sem plumas” traz movimento às palavras contundentes do poema homônimo do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Em sua primeira produção com temática explicitamente brasileira, a coreógrafa criada na Zona Sul carioca volta-se para o Rio Capibaribe e o sertão, cenários aparentemente distantes de seu radar afetivo.
— Esse poema não é regionalista. É universal. Aborda questões da existência humana. João Cabral está falando de todos os rios, de todos os enganados, de tudo que é inconcebível. É sobre o descaso, o descuido inadmissível. Me pegou por aí — explica Deborah, que recebeu o livro de presente do diretor executivo da companhia, João Elias, e releu o poema, emocionada, durante um engarrafamento no Rio, quando ainda se ocupava de seu trabalho anterior, “Belle”, em 2014.
Pernambuco não é terreno desconhecido. Deborah chegou ao Recife aos 20 anos (hoje ela tem 56), com o então companheiro Cafi, nascido lá. Os dois voltam a se encontrar em “Cão sem plumas”. Ele assina a fotografia do espetáculo, em que mais de metade das cenas acontece com o filme projetado ao fundo (são cerca de 45 dos 70 minutos totais).
Nada parece esteticamente mais distante do que Deborah e Cláudio. Ela, que nos anos 1990 conheceu o mangue beat de Chico Science e mais tarde, as obras “Geografia da fome” e “Homens e caranguejos” de Josué de Castro, procura a beleza. Ele, diretor de filmes como “Amarelo manga” e “Baixio das bestas”, busca a crueza. Os dois são amigos desde quando ela morou no Recife.
— Cabral é que nos une — conta Cláudio. — É elegante, mas certeiro, cortante. Um poeta que difere dos outros, porque é exato. Ao longo do trabalho (três anos ao todo), compreendemos isso juntos.
— Adoro o trabalho do Cláudio, que assina também a dramaturgia, a provocação. A minha estética é a do belo. Ele encontra a dele na feiura e faz questão de mostrar as vísceras — diz a diretora, que ainda uniu o Nordeste de Jorge Du Peixe, da Nação Zumbi, e Lirinha, compositor e poeta, a nomes da companhia, como Gringo Cardia, Claudia Kopke, Berna Ceppas e Jorginho de Carvalho.
A mistura deu liga. A trilha de Du Peixe é carregada de referências nordestinas, transformadas em música ampla e universal. A iluminação de Jorginho de Carvalho é precisa, e as concepções de Claudia (figurinos) e Gringo (direção de arte/cenário) causam impacto cênico.
— Fui entendendo depois que a trilha seguia o curso do rio — lembra Jorge Du Peixe. — Eu sabia que tinha que ser universal, por mais que a gente use elementos dos folguedos e das tradições.
Deborah desenvolve a temática de João Cabral e explora o homem-caranguejo, personagem bicho homem, alquebrado pela vida e, por isso mesmo, resistente. Se o poema é dividido em quatro partes, o espetáculo contém oito cenas.
Ao longo do processo, Deborah só temeu o olhar de uma pessoa: Inez Cabral, filha do poeta. Segundo a coreógrafa, Inez disse que queria ver como ela, representante da classe média carioca, trataria a pobreza. Ao fim da estreia, acabou-se o receio. Uma emocionada Inez declarou nos bastidores:
— Que coisa linda!
A lista de nomes a quem Deborah dedica “Cão sem plumas” é encabeçada por Theo, neto de 7 anos, que sofre de epidermólise bolhosa (EB), doença do tecido conjuntivo ainda sem cura, que causa bolhas e feridas na pele. Ao falar de Theo, ela se suaviza. O amor se faz presente a cada respiração.
— As coisas têm a ver com o que se vive. Theo me coloca num lugar essencial, aquele que tenho de melhor — conta ela, que desde janeiro vive entre o Rio e os EUA, onde o neto está em tratamento.
“Fui transformando a raiva em jornada”
A coreógrafa esclarece que o espetáculo não é resultado direto de Theo e sua condição. João Cabral calou fundo pela humanidade, por deixar claro como o real é espesso. Theo e o João Cabral se encontram nela no mais humano dos lugares: aquele onde amor rima com dor.
— O lugar da dor, ele está aí. Eu nunca tinha encontrado uma dor... sei lá, não dá para mensurar. Essa coisa do Theo me mudou a um ponto... não sou religiosa, mas pensei que ganhei o mundo para chegar a este momento. Como se eu tivesse uma missão — ela diz.
Aonde quer que o trabalho a levasse, Deborah procurava especialistas, perseguia informações e soluções. A busca por tratamentos e saídas para a EB a levaram a empunhar outra lança; a da pesquisa científica. A coreógrafa luta agora para que o Brasil se conscientize da importância de investir, dominar tecnologias e propiciar curas.
O amor por Theo coloca Deborah na busca pelo essencial. Na compreensão de que a terra, espessa, dá e rouba vidas.
— (A situação do Theo) caiu no meu colo, e eu não entendi. Meu primeiro neto! Como isso pode ter acontecido? Sofri muito. E fui transformando a raiva, a incompreensão, em uma jornada. E como transformar isso em beleza, mexer nessa dor? — pergunta Deborah.
O Capibaribe é o cão sem plumas. Deborah é uma avó-caranguejo.