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SOBRE A ARTE

SOBRE A ARTE

O Neorrealismo Italiano


A literatura como um meio de defesa do homem


Em uma entrevista que fiz em 1974 com o professor Ruggero Puletti da Universidade para Estrangeiros de Perugia, colhi sua visão crítica sobre o neorrealismo italiano, por sua vez condensada em seus livros “Motivos e validade da literatura contemporânea” (1969) e “Temas e estruturas de O gato pardo” (1973). Com fulcro nesses dois ensaios, apresentarei uma síntese que talvez seja útil a uma leitura comparada do neorrealismo italiano com o regionalismo brasileiro.


Há duas teses em contraposição a respeito do neorrealismo. Segundo alguns críticos, o movimento teve início em 1929, a partir da publicação de “Os Indiferentes”, de Alberto Moravia. Trata-se de um romance de denúncia daquela burguesia em que se apoiava o fascismo. Segundo outros críticos, o neorrealismo teve início em 1938, quando Vittorini publicou numa revista, em capítulos, sua obra mais significativa, “Conversações na Sicília”.


As obras do período precedente são consideradas como preparação para o advento da nova tendência da narrativa italiana. Deve-se, a propósito, dar um certo destaque à influência que a literatura norteamericana exerceu sobre os escritores italianos a partir de 1930, e particularmente sobre a problemática colocada por alguns jovens intelectuais que atuaram em torno da revista “Cinema Novo”.


O neorrealismo surge primeiro no campo da cinematografia graças às ideias e às atividades de um Mario Alicata e um Giuseppe De Santis. Sustentava-se a necessidade de abandonar a temática sentimental e gasta, para se fazer do cinema, antes de tudo um instrumento de denúncia de uma realidade social plena de contradições e incertezas, como era o caso italiano.


Vittorini colocara o problema de se fazer da literatura um meio de defesa do homem vilipendiado. Giaime Pintor propusera o princípio de identificação do intelectual com o destino do seu próprio povo. De outra parte, começaram-se a difundir as primeiras obras de documentário ou de testemunho direto do primeiro conflito mundial. Estabelecera-se com clareza que a literatura deveria abandonar toda tentativa de cômoda evasão para afrontar os problemas dramáticos do momento histórico.


Ideologia e temática

O neorrealismo italiano baseia-se na concepção marxista da história, gerando a ideia de que as plebes do Mezzoggiorno, tal como os operários do norte da Sicília, deveriam assumir a consciência da sua importância na história italiana. Sustentava-se que só através de uma organização social seria possível modificar a estrutura política e econômica do país. Em lugar do tradicional fatalismo, gerou-se a convicção de que os homens deveriam assumir corajosamente a própria sorte. Superar portanto o secular comportamento de passividade e de renúncia.


Hoje alguns críticos apontam certas falhas e deficiências no movimento neorrealista. Sustentam que ele tenha dado lugar a uma literatura popular nacionalista, segundo os princípios de Gramsci. Comentam que se frustrou a perspectiva de realização de uma literatura classista engajada.


Na verdade, essa dimensão maior que supera o nível do simples compromisso ideológico, constitui um dos elementos positivos do neorrealismo, que permitiu ao movimento realizar obras significativas e de valor universal. Pode-se afirmar mesmo que as obras decorrentes da rigorosa exigência ideológica e classista, não passam hoje de simples crônicas ou panfletos, que não resistiram ao juízo do tempo.


Os autores que superaram os limites do movimento em termos meramente ideológicos, é que deixaram obras destinadas a durar, como Vittorini, pelo intrínseco lirismo de que suas obras se revestem. Como fez Ítalo Calvino, pelo gosto da fabulação. Ou mesmo Cesare Pavese, pela valorização do mito e do destino na exploração temática de suas narrativas.


Três correntes temáticas

O neorrealismo se articula em três correntes temáticas: uma primeira que propõe o tema da guerra em aberta rejeição, preconizando valores de ordem moral. Trata-se de obras inteiramente diferentes daquelas dos memorialistas no primeiro conflito mundial, pelo sentido humano que as define e pela rejeição radical às guerras como meio de solução dos problemas das nações.


A segunda corrente é representada por aquelas obras que constituem, como objeto da narrativa, a guerra civil e a resistência armada ao fascismo, alimentadas pela esperança de se criar uma ordem social fundada sobre os princípios da liberdade e da justiça social. Nesse sentido são significativas as obras de Ítalo Calvino (desde “Il sentiero dei nidi di ragno” até “I racconti”), bem como de Cesare Pavese (desde “Prima che Il gallo canti” até “Il compagno”). Nesse contexto se insere também as obras de Tobino (“Il clandestino”) e de Vittorini (“Uomini e no”).


A terceira corrente temática neorrealista é a que se interessa pelos problemas da Itália meridional. A novelística em questão é geralmente indicada com a expressão literatura meridionalista, já porque não se limita a retratar as condições de vida do sul da península, mas pretende formular propostas de soluções aos seus problemas. Entre as obras dessa natureza destaca-se sem duvida o romance “Le terre del Sacramento” de Francesco Jovine. O escritor coloca logo em questão um herói, Luca Marano, jovem intelectual de origem camponesa, que luta para libertar seus compatriotas – camponeses e operários humildes – do jugo das crendices e superstições seculares.


O latifúndio Terras do Sacramento que pertencera à Igreja católica e depois passara à família Carnavale, era tido pelos camponeses compatriotas de Luca, como terra amaldiçoada. Luca deveria primeiro destituir os camponeses dessa crença para depois guiá-los à conscientização de seus direitos e induzi-los a apoderar-se finalmente do latifúndio do qual se tornariam proprietários. Esse episódio, que fundamenta a trama do romance, já denuncia por si mesmo uma verdade: que a população do sul da Itália, não obstante o seu atraso cultural (como se entende), deveria chegar à conclusão de que só superando-se a si mesma e enfrentando seus problemas de maneira direta, poderia melhorar a própria sorte. Essa é uma posição que já tinha sido sustentada por Carlo Levi no romance “Cristo si è fermato a Eboli” (Cristo parou em Éboli), e principalmente em “Le parole sono pietre” (As palavras são pedras). Nesta obra o escritor colhe diretamente da realidade um personagem, Salvatore Carnavale, operário que, resistindo às intimidações da Máfia, lidera uma greve em que são reivindicadas condições mais humanas de vida para sua gente. Sacrificado, seu exemplo serviu aos companheiros de trabalho como estímulo para novas lutas. A literatura meridionalista situa-se, dessa forma, como intérprete de uma situação histórica concreta, do imediato pós-guerra na Itália, quando se descortinaram ao país, estruturas de perspectivas democráticas, livres e abertas.


Essas em linhas gerais as sugestões para um estudo comparado do neorrealismo italiano e o regionalismo brasileiro, representados, por exemplo, respectivamente nas obras “Cristo si è fermato a Eboli”, de Carlo Levi, e “Vidas secas”, de Graciliano Ramos.


(Este artigo, revisado pelo autor, foi originalmente publicado no livro Itália Mater, de Emílio Vieira, Goiânia: Kelps, 2012, p. 65 a 70).


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