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SOBRE A ARTE

SOBRE A ARTE

A busca pela liberdade do pintor Willem de Kooning

À medida que a arte do pós-guerra fica mais longe no passado e vira parte da história, seus gigantes se destacam mais nitidamente. Na pintura americana, o status de Willem de Kooning, o último dos expressionistas abstratos a morrer (em 1997), vem superando o de todos os outros artistas.


A carreira de De Kooning não foi mais longa, mas mais inesperada e contrária às expectativas, menos dependente de um estilo que virou sua marca registrada, que as de seus pares Jackson Pollock, o Gotejador, Barnett Newman, o Zipador, ou Mark Rothko, o sumo-sacerdote dos retângulos transcendentais. De Kooning é tão irreverente e ruidoso quanto eles, como artista pop, mas sintonizado com o modernismo europeu de maneiras que lhe conferem profundidade e riqueza emocional. Por recusar-se a aceitar os ideais da abstração, dissolvendo as distâncias entre o figurativo e o não-figurativo, ele se apresenta imediato e presente nas abordagens não hierárquicas de hoje.


Não que ele seja fácil de absorver. Uma mostra na galeria Gagosian, em Nova York, no inverno americano passado reacendeu a discussão em torno de seu trabalho: trata-se de simplicidade perfeita ou da expressão das ideias de um tolo beberrão e demente? Ainda não há um “catalogue raisonnée” de sua obra, mas nos últimos dez anos uma biografia premiada com o Pulitzer (de 2005) e a grande retrospectiva promovida pelo MoMA em 2011-2012 definiram as linhas do campo de estudos de De Kooning, para o qual a monografia suntuosamente ilustrada de Judith Zilczer forma uma contribuição penetrante.


Zilczer trabalhou com De Kooning no museu Hirshhorn, em Washington, na década de 1980, quando o artista estava começando a produzir suas abstrações enxutas em cores primárias. Ela se pergunta “como um pintor conhecido por seu expressionismo visceral e simples pode ter criado trabalhos de graça tão ímpar?”. Em “A Way of Living: The Art of Willem de Kooning” [Phaidon, U$ 65,82 (na Amazon), 288 págs.], ela interliga, estética e biograficamente, cada fase da proteica produção de De Kooning, unidas pelo que ela vê como sendo um imperativo romântico: o lema do pintor de que “a pintura -qualquer tipo ou estilo de pintura- o simples fato de estar pintando, na realidade é uma maneira de viver, um estilo de viver. É exatamente por sua inutilidade que ela é livre.”


A busca de liberdade de De Kooning começou em 1926, quando, fascinado por filmes ocidentais, ele desistiu de sua profissão de artista comercial em Roterdã, sua cidade natal, e atravessou o Atlântico num navio de carga, viajando como passageiro clandestino. Em Nova York, entrou em contato com a pintura moderna e conheceu muitos artistas. “Conheci Gorky. Ele possuía um dom extraordinário de acertar as coisas em cheio, algo fora do comum. Então me liguei a ele.”


As formas líricas e biomórficas criadas por Gorky faziam uma ponte entre o surrealismo europeu e a abstração americana. A influência dele sobre De Kooning persistiu dos trabalhos figurativos iniciais até as pinturas caligráficas negras do final dos anos 1940, referenciando um conjunto de detritos urbanos feito de sombras, manchas, texturas de calçadas observadas em caminhadas noturnas por Manhattan, até a grande apresentação de fragmentos anatômicos deformados, dentes, bocas e olhos da tela inovadora “Attic” (sótão), de 1949. De Kooning queria intitular a obra “Interiors”, mas sua mulher, Elaine, “disse que ‘nenhum marido meu vai intitular uma pintura ‘Interiores’ -e então pensar num cômodo específico’, e Bill disse ‘o sótão, porque você coloca tudo nele’”.


Nessa época, Gorky já tinha morrido e De Kooning, desenhista excepcional, manifestava o desejo de pintar como Ingres e Soutine ao mesmo tempo. As veementes pinturas “Woman” emprestam as linhas decisivas e o rigor clássico do primeiro e os gestos incontidos, a distorção expressiva e o manuseio tátil do segundo -tudo num idioma vernáculo das pin-ups americanas. Numa visita extraordinariamente bem-sucedida ao ateliê, o inspirado crítico de arte Meyer Schapiro salvou “Woman 1″ (1950-52) da lata de lixo, e a série projetou De Kooning para a vanguarda de Nova York. Zilczer posiciona tudo isso corretamente no contexto das batalhas culturais de meados do século -a hegemonia americana na abstração, “action painting” e as incipientes guerras de gênero–, embora também tome nota da robustez holandesa, anti-idealizadora das obras.


“Ver Bill na rua no centro da cidade era testemunhar uma visão cuja aura eclipsava até sua própria sombra”, comentou Robert Rauschenberg, lembrando esse período, e durante algum tempo o próprio De Kooning se deixou dominar pelo mito expressionista abstrato. Ele recordou que, numa festa na casa de Franz Kline, a sala era pequena e abafada. “Pollock olhou para o sujeito e disse ‘você precisa de um pouco mais ar aqui’ e quebrou um vidro com seu punho. Naquele momento, foi um ato tão delicioso, tão agressivo. Como crianças, quebramos todos os vidros. Fazer coisas assim era incrível.”


Mas De Kooning não demorou a perceber que “o próprio fato de isso estar em alta agora quer dizer que na realidade está a caminho de terminar”. Em 1960 ele intitulou uma magnífica abstração amarela e rosa “Door to the River” (porta para o rio): se a tela é a porta e a tinta é o rio, ao qual o artista infunde vida e faz fluir, o título revelou “um instinto, de algum modo… como se essa fosse minha rota de fuga, meu futuro”. Ele deixou Nova York e foi viver em Springs, um vilarejo nas proximidades de East Hampton, em Long Island, que virou sua Giverny em paisagens cujos acordes coloridos ondulantes evocam água, ondas, sol, areia, capim, todos estremecendo de sensualidade: “Woman”, “Sag Harbor” (porto caído), “Whose Name Was Writ in Water” (cujo nome estava escrito na água) e “Screams of Children Come from Seagulls” (gritos de crianças vêm das gaivotas).


A análise de Zilczer liga grandes obras como essas -em que sentimos a força da convicção de De Kooning de que “a carne é a razão pela qual se inventou a tinta a óleo”- com as pinturas anticorpóreas de sua fase posterior. Estas ainda são varridas pelo vento, mas o ambiente norte-americano dá lugar a uma luz branca ideal, de estúdio, em telas glacialmente lisas feitas de linhas curvas em movimento e formas curvas, sugerindo a precisão da patinação no gelo, com a qual De Kooning tinha se divertido na infância. As voltas atordoantes também evocam fragmentos corporais, e o humor esdrúxulo do caricaturista continua presente -em “The Cat’s Meow” (o miado do gato), por exemplo–, mas infundida de uma luminosidade etérea. De Kooning sempre tinha qualificado Picasso de “o sujeito que é preciso superar”; agora a qualidade flutuante e lacônica de Matisse libera suas estruturas espaciais.


Émile Zola definiu a arte como “um cantinho da natureza vista pelo prisma de um temperamento”. Para Zilczer, De Kooning inverteu a fórmula, “criando visões de um temperamento visto pelo prisma da natureza. O fato de ele tê-lo feito por quase 60 anos é um testemunho de seu modo de vida.” O relato generoso e empático que ela faz, embasado em conhecimento discreto mas demonstrando reflexão incisiva, torna-se a primeira escala em uma revisão deste artista dos mais sedutores, influentes e ainda polêmicos.


Tradução de CLARA ALLAIN

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