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SOBRE A ARTE

SOBRE A ARTE

A última entrevista de Nelson Rodrigues


Entrevista concedida em 26 de novembro de 1980. Nelson Rodrigues morreria alguns meses depois


Em entrevista ao repórter J. J. Ribeiro, do jornal “O Opiniático” (órgão de destacada relevância na imprensa marrom e sensacionalista de Minas Gerais), o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues fala de seus amores e suas paixões — incluindo aí o seu time do coração, o Fluminense. Além de abordar temas referentes à política, ao Brasil e aos brasileiros, ao ser humano em geral, à sua vida e sua trajetória como escritor, entre outros assuntos não menos contundentes. Aos 66 anos de idade, morando em um apartamento em Copacabana, de frente à avenida Atlântica, o velho Nelson apresenta-se com o mesmo tom debochado e exagerado de sempre. Impondo a sua presença e aquele seu jeito peculiar e característico de se expressar e de se fazer entender: olhar insondável e apático; voz grossa e embolada; gestos vagarosos e ornamentais como os de um peixe colorido num aquário. Sem deixar, portanto, de esboçar certo entusiasmo e de exibir uma imagem de opulência física de causar inveja a qualquer um. Apesar de estar com a saúde um tanto quanto abalada, uma vez que ainda se recupera de uma colite ulcerática, doença essa que por pouco não o matou. As palavras tiradas da boca do entrevistado são as mesmas utilizadas em suas crônicas, contos, romances, peças teatrais, e difundidas por outros meios de comunicação (televisão, rádio e periódicos).


J. J. R. — Como foram os primeiros anos de sua vida?

Nelson Rodrigues — “Nasci em Pernambuco, a 23 de agosto de 1912, e permaneci em Recife até os cinco anos. Depois vim para o Rio de Janeiro, para onde trouxe minhas primeiras sensações da boca e do nariz: o gosto de pitanga e do caju e o cheiro do cavalo de estábulo. Mesmo considerando o mundo um péssimo anfitrião e a viagem a mais burra das experiências humanas, voltei a Pernambuco na mocidade, retornando à infância e às profundas sensações”.


J. J. R. — Como surgiu seu desejo de escrever?

Nelson Rodrigues — “A rigor, meu primeiro texto foi escrito na Escola Prudente de Morais aos sete anos de idade. Na época, sou considerado gênio por alguns, um tarado em potencial pelas professoras, e um maluco pelas alunas. A professora resolveu que não íamos escrever nada sobre estampas de vacas e pintinhos. Que podíamos fazer uma história de nossa cabeça, para ver quem era melhor. Ganhamos eu e um outro garoto que escreveu sobre um rajá montado no seu elefante favorito. Eu escrevi um texto que já me definia, um texto sobre o adultério. Minha primeira ‘A Vida Como Ela É…’ Um sujeito que entra em casa inesperadamente, abre o quarto e vê a mulher nua e um vulto pulando pela janela e desaparecendo na noite. O cara puxou a faca e matou a mulher”.


J. J. R. — Qual importância da escrita em sua vida?

Nelson Rodrigues — “Se eu não escrevesse, seria um desgraçado. A rigor, se você examinar bem, todos os meus personagens são tristes. Salvo algum esquecimento, não vejo ninguém alegre”.


J. J. R. — E a leitura, representa algo de fundamental em sua atividade de escritor?

Nelson Rodrigues — “Acho que ter cultura é importante para um dramaturgo. Ler muito, nem que seja um único livro, como ‘O Idiota’, ‘Crime e Castigo’, ‘Ana Karenina’ ou ‘Guerra e Paz’. Quando comecei a escrever, a única peça que eu conhecia bem — palavra de honra — era ‘Maria Cachucha’, de Joracy Camargo. Eu lia muito, de maneira voraz e ininterrupta. Mas só romances”.


J. J. R. — E o que o senhor diria para os leitores?

Nelson Rodrigues — “Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia”.


J. J. R. — Como foi o seu primeiro contato com o jornalismo? E o que é ser jornalista?

Nelson Rodrigues — “Quando entrei, pela primeira vez, numa redação, acabava de fazer dez anos. Com a trágica inocência das calças curtas, tive a sensação de que entrava numa outra realidade. As pessoas, as mesas, as cadeiras e até as palavras tinham um halo intenso e lívido. Era, sim, uma paisagem tão fascinante e espectral como se redatores, mesas, cadeiras e contínuos fossem também submarinos. Com o tempo, houve uma progressiva acomodação óptica entre mim e os vários jornais onde trabalhei. E as coisas passaram a ter a luz exata. Sempre restou em mim, porém, um mínimo do deslumbramento inicial”. — Ligeira pausa para acender o cigarro e dar a primeira tragada. — “Eu fui para a reportagem de polícia aos treze anos. Ora, por quê? A preferência pelo assunto já era uma antecipação de minha obra. A reportagem policial vai transformar-se para sempre num dos elementos básicos de minha visão de vida. Através dela tive intimidade com a morte (que sempre me apavorou) e nela vi um cadáver pela primeira vez. O jornalismo, daí em diante, passou a ser vital para mim. Tinha, entretanto, intenções literárias — ser romancista, a principal delas. Veio o teatro, porém”. — Com volubilidade evocativa: — “Até hoje, os seres da redação ainda me parecem de um certo dramatismo e têm não sei que toque alucinatório. Estou pensando em Gide e no seu gemido adolescente: — ‘Eu não sou como os outros! Eu não sou como os outros!’”. — De modo exasperado e suplicante: — “Nós, de jornal, também estamos meio-tom acima da rígida normalidade”.


J. J. R. — Como o senhor traduz o jornalismo?

Nelson Rodrigues — “Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de ‘ilustre’, de ‘insigne’, de ‘formidável’, qualquer borra-botas”.


J. J. R. — O senhor faz uso de diversos pseudônimos… Quem é Susana Flag?

Nelson Rodrigues — “A Susana Flag nasceu quando eu entrei para os Diários Associados. O Fred Chateaubriand disse que ia comprar um romance americano para publicar em capítulos. Eu me propus a fazer a experiência de escrever uma história em folhetim. O Fred argumentou: — ‘Fazer experiência nas minhas costas?’ Está bem, eu falei, então vai ser para valer. E escrevi Meu Destino é Pecar, que alcançou logo um sucesso enorme. Eu gosto muito do livro. Acho que carrego a nostalgia do folhetim. E tenho bossa para escrever folhetim”.


J. J. R. — E como foi a sua opção pelo teatro?

Nelson Rodrigues — “‘A Família Lero-Lero’, de Magalhães Júnior, fazia um sucesso danado. Eu pensei comigo que o Magalhães estava ganhando uma nota firme, por que eu não podia ganhar dinheiro com uma peça do gênero? Fui para casa decidido a fazer uma chanchada. Escrevi a primeira e segunda páginas, a peça tomou conta de mim e saiu uma coisa tenebrosa: um mendigo humano, espectral, paralítico e a mulher que foge com o chofer. (…) E fui procurar empresário. Quem me ajudou foi um amigo de meu irmão Mário Filho, o Vargas Neto. Estávamos em pleno Estado Novo e pelo fato de se chamar Vargas tinha todas as portas abertas automaticamente. Ele escreveu uma carta para o diretor do Serviço Nacional de Teatro me chamando de Tchekhov para cima. Dois meses depois estreava ‘A Mulher sem Pecado’. Um dia vi o Santa Rosa saindo do teatro. Ele foi tão generoso, tão cálido, que se ouviu um barulho: era minha cara batendo no chão. O maior espanto que tive na vida literária. Voltei deslumbrado para casa. No domingo, ele publicou uma crítica ou uma crônica com o seguinte título: ‘Nelson Rodrigues descobriu o Teatro Moderno’”.


J. J. R. — O que há de peculiar em seu trabalho como dramaturgo?

Nelson Rodrigues — “‘Com Vestido de Noiva’, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o, e para sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há, simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação. Pois a partir de ‘Álbum de Família’ — drama que seguiu a ‘Vestido de Noiva’ — enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito. Que caminho será este? Respondo: de um teatro que se poderia chamar assim — ‘desagradável’. Numa palavra, estou fazendo um ‘teatro desagradável’, ‘peças desagradáveis’. No gênero destas, incluí, desde logo, ‘Álbum de Família’, ‘Anjo Negro’ e a recente ‘Senhora dos Afogados’. E por que ‘peças desagradáveis’? Segundo já disse, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia” — esboça um olhar sarcástico.


J. J. R. — O que é o teatro, na sua opinião?

Nelson Rodrigues — “A menos histórica, a mais pré-histórica das artes” — exprime vigorosamente.


J. J. R. — Como foi a estreia da peça “Perdoa-me por me Traíres”, e como ela foi recebida pelo grande público? Dizem que ela foi bastante polêmica, para não dizer turbulenta?

Nelson Rodrigues — “Senhoras grã-finérrimas subiam nas cadeiras e assoviavam como apaches. Meu texto não tinha um mísero palavrão. Quem dizia os palavrões era a plateia. No camarote, o então vereador Wilson Leite Passos puxou um revólver. E, como um Tom Mix, queria, decerto, fuzilar o meu texto. Em suma: eu, simples autor dramático, fui tratado como em filme de bangue-bangue se trata de ladrão de cavalos. A plateia só faltou me enforcar num galho de árvore. (…) Insisto em dizer que estava isento, imaculado de medo. Lembro-me de uma santa senhora, trepada numa cadeira a esganiçar-se: ‘Tarado! Tarado!’. (…) Mas se as damas subiam pelas paredes como lagartixas profissionais; se outras sapateavam como bailarinas espanholas; e se cavalheiros queriam invadir a cena — aquilo tinha que ser algo de mais profundo, inexorável e vital. Perdoa-me por me Traíres forçara na platéia um pavoroso fluxo de consciência. E eu posso dizer, sem nenhuma pose, que, para minha sensibilidade autoral, a verdadeira apoteose é a vaia. Dias depois, um repórter veio entrevistar-me: — ‘você se considera realizado? Respondi-lhe: ‘Sou um fracassado.’ O repórter riu, porque todas as respostas sérias parecem engraçadíssimas” — risos.


J. J. R. — Se o senhor tivesse de definir o aplauso, ou até mesmo a vaia, diria o quê?

Nelson Rodrigues — “A plateia só é respeitosa quando não está a entender nada”. — E arremata, dizendo: — “A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem”.


J. J. R. — O que o senhor tem a dizer sobre o ser humano?

Nelson Rodrigues — “O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo”. — Aparenta desânimo. — “O ser humano, tal como imaginamos, não existe”. — Expressa-se, de forma veemente: — “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez”. — Diz enquanto retira um cigarro do maço e manipula um isqueiro: — “Somos aquela pureza e somos aquela miséria. Ora aparecemos varados de luz, como um santo de vitral, ora surgimos como faunos de tapete”. — Engrossando e reforçando o timbre de voz: — “Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva.” — Neste instante, aproxima-se e em voz baixa, fumando mais um cigarro: — “O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.” — Silêncio prolongado. — “O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida: ‘Senhoras e senhores, eu sou um canalha’”. — E, em tom eloquente: — “Não há nada que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou”.


J. J. R. — O senhor não aposta, não acredita no ser humano?

Nelson Rodrigues — “Só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam”.


J. J. R. — E na bondade?

Nelson Rodrigues — “Só acredito na bondade que ri. Todo santo devia ser jucundo como um abade da Brahma”.


J. J. R. — O que mais incomoda o ser humano?

Nelson Rodrigues — “Nada nos humilha mais do que a coragem alheia”.


J. J. R. — Na verdade, o que é o homem?

Nelson Rodrigues — “O homem é um menino perene”.


J. J. R. — Para o senhor, que importância tem o dinheiro?

Nelson Rodrigues — “Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”. — E emenda, fazendo um muxoxo: — “Há homens que, por dinheiro, são capazes até de uma boa ação”.


J. J. R. — E a respeito do amor?

Nelson Rodrigues — “Quem nunca desejou morrer com o ser amado nunca amou, nem sabe o que é amar”. — De maneira inopinada, eis que esclarece: — “A doença me reaproximou, por exemplo, da minha mulher Elza. Estávamos separados havia quinze anos. Hoje ela cuida de mim, nós nos amamos. É o que eu sempre disse: o verdadeiro amor é eterno, pode ser interrompido, por razões circunstanciais, mas é eterno”.


J. J. R. — Na sua opinião, o que é a beleza?

Nelson Rodrigues — “A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual”.


J. J. R. — E o que dizer acerca das mulheres?

Nelson Rodrigues — “Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível”.


J. J. R. — E sobre as mulheres, na atualidade?

Nelson Rodrigues — “Nunca a mulher foi menos amada do que em nossos dias”.


J. J. R. – É verdade que toda mulher gosta de apanhar?

Nelson Rodrigues — “Toda mulher gosta de apanhar, apenas as neuróticas reagem”.


J. J. R. — Qual a importância de se ter filhos?

Nelson Rodrigues — “Um filho, numa mulher, é uma transformação. Até uma cretina, quando tem um filho, melhora”.


J. J. R. — Como definir o casamento?

Nelson Rodrigues — “Só um débil mental pode casar-se na presunção de que o casamento é divertido, variado ou simplesmente tolerável. É divertido como um túmulo” — disse com o olhar atônito e extraviado. — “O casamento é o máximo da solidão com a mínima privacidade”. — E agora diz em alto e bom som: — “Só o cinismo redime um casamento. É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata”.


J. J. R. — Numa relação, o que de fato importa?

Nelson Rodrigues — “Não damos importância ao beijo na boca. E, no entanto, o verdadeiro defloramento é o primeiro beijo na boca. A verdadeira posse é o beijo, e repito: — é o beijo na boca que faz do casal o ser único, definitivo. Tudo mais é tão secundário, tão frágil, tão irreal”.


J. J. R. — Algum recado para as mulheres?

Nelson Rodrigues — “Era preciso que alguém fosse de mulher em mulher anunciando: ser bonita não interessa, seja interessante”.


J. J. R. — E para os homens?

Nelson Rodrigues — “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”.


J. J. R. — E para os casais, alguma dica?

Nelson Rodrigues — “A maioria das pessoas imagina que o importante, no diálogo, é a palavra. Engano, e repito: — o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão”.


J. J. R. — E no que diz respeito à sexualidade humana?

Nelson Rodrigues — “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”.


J. J. R. — Nós todos, somos indecentes, vulgares e imorais?

Nelson Rodrigues — “Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo podia-se andar nu”.


J. J. R. — Sobre o adultério?

Nelson Rodrigues — “Como dever, como obrigação, a fidelidade é uma virtude vil”. — E como se desabafasse: — “A fidelidade devia ser facultativa”. — Além de revelar: — “É preciso trair para não ser traído”.


J. J. R. — Sobre a adúltera?

Nelson Rodrigues — “Não existe família sem adúltera” — responde com ironia. E continua com as suas divagações: — “Nenhuma mulher trai por amor ou desamor. O que há é o apelo milenar, a nostalgia da prostituta que existe na mais pura”. — Olhando atentamente para o repórter: — “A prostituta só enlouquece excepcionalmente. A mulher honesta, sim, é que, devorada pelos próprios escrúpulos, está sempre no limite, na implacável fronteira”. — E mostrando o dedo indicador: — “Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém”.


J. J. R. — E a Família?

Nelson Rodrigues — “A família é o inferno de todos nós”. — E, aliás, tenta explicar: — “Toda família tem um momento em que começa a apodrecer. Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo”.


J. J. R. — Falemos agora da virtude e daqueles que o praticam?

Nelson Rodrigues — “Perfeição é coisa de menininha tocadora de piano” — expondo-se, exultante. — “O puro é capaz das abjeções inesperadas e totais e o obsceno, de incoerências deslumbrantes”. — Reflete por alguns segundos e despeja: — “Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera”. — Toma fôlego e dá prosseguimento ao raciocínio: — “O ‘homem de bem’ é um cadáver mal informado. Não sabe que morreu”. — E numa alegação afirmativa: — “Falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista”.


J. J. R. — E o que é ser canalha?

Nelson Rodrigues — “Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo”. — E, por fim, ainda acrescenta: — “O brasileiro, quando não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte”.


J. J. R. — Como o senhor vê o brasileiro?

Nelson Rodrigues — “O brasileiro não está preparado para ser ‘o maior do mundo’ em coisa nenhuma. Ser ‘o maior do mundo’ em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade”. — E, sendo, categórico: — “O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”.


J. J. R. — Como o senhor define o Brasil?

Nelson Rodrigues — “Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante”.


J. J. R. — E a Europa? E o europeu?

Nelson Rodrigues — “O europeu ou é um Paul Valéry ou uma besta!”. — Continuando a frase após breve distração, com coisas e objetos do seu entorno: — “… a Europa é uma burrice aparelhada de museus. (…) Ao passo que o Brasil é o analfabetismo genial!”.


J. J. R. — E nós os mineiros — em alusão ao meu conterrâneo e nosso colega de profissão, bem como ao seu mais fiel e dedicado amigo Otto Lara Resende —, o que de fato somos?

Nelson Rodrigues — “O Otto Lara está certo. O mineiro só é solidário no câncer” — gargalhadas e risos estrepitosos.


J. J. R. — E em relação ao bairro de Copacabana, local onde o senhor atualmente reside?

Nelson Rodrigues — “Copacabana vive, por semana, sete domingos”.


J. J. R. — Para o senhor, o que representa o boteco?

Nelson Rodrigues — “O boteco é ressonante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele”.


J. J. R. — Vamos falar agora de sua grande paixão, o futebol?

Nelson Rodrigues — “O futebol é passional porque é jogado pelo pobre ser humano”. — Dizendo de modo exclamativo: — “Eu sempre digo que uma peleja não é o seu placar. Muitas vezes, o que importa é o que o placar não diz, o que o placar não confessa”. — Entre inquieto e provocativo: — “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”. — Fazendo pose, com outro cigarro a tiracolo. — “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural…”.


J. J. R. — Nos fale então sobre o “Sobrenatural de Almeida”?

Nelson Rodrigues — “Amigos, dizia Horácio que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. Esta aí uma clara alusão ao Sobrenatural de Almeida. Se Horácio fosse torcedor rubro-negro diria a mesma coisa, por outras palavras: — ‘Há coisas na vida do Flamengo que só o Sobrenatural de Almeida explica’”. — Pausa, para uma tosse rápida e seca. — “Os idiotas da objetividade não vão além dos fatos concretos. E não percebem que o mistério pertence ao futebol. Não há clássico e não há pelada sem um mínimo de absurdo, sem um mínimo de fantástico. Por exemplo: — O que está acontecendo com o Flamengo. E não só com o rubro-negro. Com o Botafogo também”. — Mais uma pausa, para o pigarro e um gole d’água. — “O curioso é que o Sobrenatural andava sumido. Ou melhor dizendo: — não tinha imprensa. Ora, nós sabemos que sem promoção ninguém é nada neste país. O sujeito pode ser um gênio da cabeça aos sapatos. Mas ou sai nos jornais, ou passará a vida rosnando de impotência e frustração. Era justamente o que estava acontecendo, nos últimos tempos, com o Sobrenatural de Almeida. Os jornais o sepultavam num cavo silêncio”. — Cala-se, meditabundo, e recomeça: — “Hoje, o Sobrenatural mora num quarto infecto, em Irajá. E pior: – todas as manhãs, ao acordar, tem de entrar na fila do banheiro coletivo. Daí o seu horror aos homens e aos clubes. Seu campo de ação está limitado ao futebol. Podia gostar de um clube. Não. Quer ver a caveira de todos. No momento, derrama seus malefícios sobre o Flamengo e sobre o Botafogo”.


J. J. R. — E sobre o Flamengo?

Nelson Rodrigues — “Cada brasileiro, vivo ou morto já foi Flamengo por um instante, por um dia” — sorri levemente. _ “Se Euclides da Cunha fosse vivo teria preferido o Flamengo a Canudos para contar a história do povo brasileiro” — continua com o seu leve sorriso sarcástico. — “Supõe-se que todas as alegrias se parecem. Mas a verdade é que a alegria rubro-negra não se parece com nenhuma outra. Não sei se é funda, ou mais dilacerada, ou mais santa. Só sei que é diferente…”.


J. J. R. — E sobre o seu time do coração, o Fluminense?

Nelson Rodrigues — “Eu vos digo que o melhor time é o Fluminense. E podem me dizer que os fatos provam o contrário, que eu vos respondo: pior para os fatos”. — Levantando-se e estendendo os punhos, excitado: — “Se quereis saber o futuro do Fluminense, olhai para o seu passado. A história do tricolor traduz a predestinação para a glória. A grande Guerra seria apenas a paisagem, apenas o fundo das nossas botinadas. Enquanto morria um mundo e começava outro, eu só via o Fluminense”. — E de forma ainda mais exacerbada, espalhafatoso nos gestos e no jeito de se comportar, agitado e impulsivo: — “Ser tricolor não é uma questão de gosto ou opção, mas um acontecimento de fundo metafísico, um arranjo cósmico ao qual não se pode — e nem se deseja — fugir”. — E com um brilho diferente no olhar: — “O Fluminense nasceu com a vocação da eternidade… tudo pode passar… só o tricolor não passará jamais”. — Permanece então exaltado, e acende outro cigarro. — “Se o Fluminense jogasse no céu, eu morreria para vê-lo jogar”. — Dá uma tragada furiosa no cigarro, soltando e expelindo, do fundo do seu peitoral, bastante fumaça junto com o seu vozeirão inconfundível: — “Sou tricolor, sempre fui tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas, muito antes da presente encarnação”.


J. J. R. — E o que dizer sobre os dois times, Flamengo e Fluminense? E o Fla-Flu?

Nelson Rodrigues — “O Flamengo tem mais torcida, o Fluminense tem mais gente!” — acalmando-se um pouco, menos excitado e delirante. — “Grandes são os outros, o Fluminense é enorme”. — A tosse seca interrompe novamente a sua explanação. — “Pode-se identificar um tricolor entre milhares, entre milhões. Ele se distingue dos demais por uma irradiação específica e deslumbradora”. — E com a voz trêmula e quase embargada pelo cigarro: — “Nas situações de rotina, um ‘pó-de-arroz’ pode ficar em casa abanando-se com a Revista do Rádio. Mas quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre: os tricolores vivos, doentes e mortos aparecem. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas e os mortos de suas tumbas”. — Com ar e postura de barítono italiano: — “Uma torcida não vale a pena pela sua expressão numérica. Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento. E a torcida tricolor leva um imperecível estandarte de paixão”. — E, ao final, descarrega: — “Quando começou o Fla-Flu? Eu diria — O Fla-Flu não tem começo. O Fla-Flu não tem fim. O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada. E aí então as multidões despertaram”.


J. J. R. — E por falar em paixão, como o senhor a definiria?

Nelson Rodrigues — “Sem paixão não dá nem para chupar picolé”.


J. J. R. — A paixão pode ser de alguma maneira prejudicial?

Nelson Rodrigues — “Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”.


J. J. R. — Fale um pouco sobre os políticos?

Nelson Rodrigues — “Eu me nego a acreditar que um político, mesmo o mais doce político, tenha censo moral”.


J. J. R. — Para o senhor, o que representa a figura de um líder?

Nelson Rodrigues — “O líder é um canalha. Dirá alguém que estou generalizando. Exato: estou generalizando. Vejam, por exemplo, Stálin. Ninguém mais líder. Lênin pode ser esquecido, Stálin, não. Um dia, os camponeses insinuaram uma resistência. Stálin não teve nem dúvida, nem pena. Matou, de fome punitiva, 12 milhões de camponeses. Nem mais, nem menos: — 12 milhões. Era um maravilhoso canalha, e, portanto, o líder puro”. — Para e pensa, e logo depois avança com as palavras: — “E não foi traído. Aí está o mistério que, realmente, não é mistério. É uma verdade historicamente demonstrada: — o canalha, quando investido de liderança, faz, inventa, aglutina e dinamiza massas de canalhas. Façam a seguinte experiência: — ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá ninguém, e repito: — ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem na mesma esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável”. — Breve interrupção na fala, para daí expor em sequência: — “Instantaneamente, outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto”.


J. J. R. — Como é que o senhor se posiciona politicamente? Na direita, esquerda ou centro?

Nelson Rodrigues — “Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário”. — Além de declarar com frêmito e indignação: — “Sou reacionário. Minha reação é contra tudo que não presta”.


J. J. R. — Como é que o senhor se coloca diante do comunismo?

Nelson Rodrigues — “O homem só é feliz pelo supérfluo. No comunismo, só se tem o essencial. Que coisa abominável e ridícula”. — E adverte, com elevada dose de escárnio e agudo senso de humor: — “O pior de tudo que pode haver é realmente o comunismo. Se o Brasil caísse no domínio comunista, por 48 horas que fosse, eu estourava os miolos”.


J. J. R. — E sobre aqueles que se dizem libertários?

Nelson Rodrigues — “Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade! A dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura”.


J. J. R. — E com relação às feministas?

Nelson Rodrigues — “As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado”.


J. J. R. – Como o senhor explicaria a psicanálise?

Nelson Rodrigues — “Entre o psicanalista e o doente, o mais perigoso é o psicanalista” — disse, querendo imitar a postura, o gestual e a mímica, convencional e caricata, de todo terapeuta, seja ele freudiano ou não, lacaniano e/ou de diferentes matizes conceituais e teóricas. E atuando com a mesma desenvoltura e o mesmo caráter performático: — “O cardiologista não tem, como o analista, dez anos para curar o doente. Ou melhor: — dez anos para não curar. Não há no enfarte a paciência das neuroses”. — Mudando agora de postura: — “’Segundo o Otto Lara Resende, não se deve mexer na alma’. E fui mais longe, ao observar que a análise é um risco de vida, uma janela aberta para o infinito. Tudo se torna maravilhosamente possível. Eu conhecia uma menina, delícia de garota, que com três meses de análise queria matar; em seguida, quis morrer. E uma noite ia despejando água quente no ouvido do marido etc. etc”.


J. J. R. — Censura — é hoje mais implacável?

Nelson Rodrigues — “Não admito censura nem de Jesus Cristo” — e apontando para o alto, numa clara exibição (ritualística e teatralizada) de louvor e de reverência. Para logo em seguida, pontuar: — “Todos os presidentes, inclusive depois de 1964, me massacraram. A censura usa um tratamento discriminatório contra mim”. — E desabafa, notadamente abalado emocionalmente, como se as palavras não tivessem força e nem ânimo para que fluíssem solenemente do fundo de sua garganta: — “O meu horror à tortura e à censura é tão grande ou maior do que o de vocês. Por uma série de motivos. Eu tenho um filho que está preso e condenado a cinquenta anos. Tenho, portanto, de ter uma posição muito nítida”.


J. J. R. — Nos conte mais acerca da situação do seu filho?

Nelson Rodrigues — “Parece que meu filho, como seus companheiros, não aceita o indulto. Acho isso de uma inocência que me dá vontade de sentar no meio-fio e chorar lágrimas de esguicho”.


J. J. R. — Que conselho dar aos jovens?

Nelson Rodrigues — “Jovens: envelheçam rapidamente!”.


J. J. R. — Qual foi, no seu entendimento, o grande acontecimento do século 20?

Nelson Rodrigues — “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”. — Silêncio profundo e grandiloquente. — “Em nosso século, o ‘grande homem’ pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta”. — Outro intervalo, para mais um gole d’água e acender o quarto e, talvez, o último cigarro a ser desbragadamente consumido nesta entrevista. — “Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina”.


J. J. R. — Como é que o senhor define sua personalidade, sua maneira de ser? E como é o homem Nelson Rodrigues?

Nelson Rodrigues — “O sujeito mais romântico que alguém já viu. Desde garotinho sonho com o amor eterno. Na minha infância profunda os casais não se separavam. Havia brigas, agressões de parte a parte, insultos pesadíssimos, mas o casal não se separava. A separação era uma tragédia. Em último caso, a mulher apelava para o adultério. Sou romântico como um pierrô suburbano. Diga-se de passagem, eu sou suburbano. Tenho a alma do subúrbio. Deodoro, Vaz Lobo — um estilo de vida. Um estilo apaixonante”. — E faz algumas ponderações, do tipo: — “De vez em quando, alguém me chama de ‘flor de obsessão’. Não protesto, e explico: — não faço nenhum mistério dos meus defeitos. Eu os tenho e os prezo (estou usando os pronomes como o Otto Lara Resende na sua fase lisboeta). Sou um obsessivo. E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas? Repito: — não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas”. — Não cessa de tagarelar, mesmo com a respiração um pouco ofegante e a fala entrecortada em razão do cigarro preso à boca, já quase finalizado: — “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”. — E acentua, com poucas palavras: — “Um ex-Narciso que tem horror à própria imagem”.


J. J. R. — E o que é a morte?

Nelson Rodrigues — “A morte é anterior a si mesma”.


J. J. R. — E qual seria então o seu epitáfio, já escolheu?

Nelson Rodrigues — “’Aqui jaz Nelson Rodrigues, assassinado pelos imbecis de ambos os sexos”’.

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