Vermeer: o pintor do silêncio ou a metafísica do momento
A simplicidade e facilidade que emana da sua obra se deve a um trabalho em filigrana, os pormenores estão trabalhados até à exaustão e a aparente banalidade temática, no fundo, esconde uma grande profundidade estética e humana
Dizia-se que a Holanda se banhava numa alegre e feliz mediocridade, os pregadores protestantes, sempre virulentos contra a posse de bens, iam ajudando a desnudar as casas e os lugares públicos. O protestantismo bom: o iconoclasta, o anti-arte, anti-imagem. Dizia-se ainda que os holandeses viviam franciscanamente despojados.
De alguma forma, os artistas estragam sempre alguma alegre festa burguesa: os pintores mostraram que essa imagem que se tinha dos holandeses é falsa. As igrejas foram vítimas de iconoclastia, mas as casas particulares, os pintores holandeses deixaram esse testemunho para a posteridade, mantinham uma cornucópia visual. A explosão de cor, que antes ficavam apenas nos domínios da corte e do clero, tinha-se transferido para as habitações.
A pintura de temática religiosa vai-se transferir paulatinamente para as “cenas do quotidiano”, uma espécie de reality show avant la lettre, em que os retratados são as pessoas comuns e as cenas de gestão normal da vida corrente se tornam o foco do olhar dos pintores.
Porque gostamos tanto dos “pintores holandeses”? As respostas a esta pergunta são diversas e são dadas de diferentes perspectivas.
Às grandes cenas abertas de conjunto da pintura anterior, os holandeses respondem com um foco nos detalhes em detalhe. O zoom do detalhe confere maior proximidade, humanidade e identificação pessoal ao espetador. A pintura holandesa é humana, graciosa, leve, aparentemente simples e, quase, conseguimos ver a nós mesmos nas cenas retratadas. Temos uma experiência estético-solidária: repare-se que é irresistível ver um quadro desses e não nos imaginarmos vivendo naquela época, com aqueles trajes, naquele local e sentimos ainda que, se isso acontecesse, seríamos felizes – como na audição de grande parte de Mozart, sentimos sempre abrir-se uma bolsa de serenidade dentro de nós logo nos primeiros compassos. Esta experiência está bem retratada na aparente boutade de Woody Allen “quando ouço Wagner, me dá vontade de invadir a Polônia”.
Os objetos do quotidiano levam-nos de volta à natureza, mãe de todas as coisas.
Johannes Vermeer (1632-1675) é acompanhado na sua época por Gerard Dou, Nicolas Maes, Jan Steen, Gerard Ter Borch, Gabriel Metsu, Pieter De Hooch.
A estranha sensação de suspensão do tempo em Vermeer vem dada pela visão tríptica: troca de olhares, circulação do ar e fluidez da luz. O pintor fixa a pintura num ponto e, com isso, educa-nos o olhar: vemos tudo “a partir” de um ponto.
Note-se que temos sempre a sensação de estar a ouvir uma conversa sem dela ser participantes: Vermeer transforma-nos em “voyeurs”. Os retratados são graves e “vaporosos” e nós sentimos apenas a vibração que exala destes dois extremos. Parece que surpreendemos pessoas comuns num momento inopinado e passamos a saber um segredo grave sobre a vida delas, como em tudo na vida, um fato privado posto a público é sempre, de alguma forma, comprometedor. A vida dos retratados fica “comprometida” pela captura do nosso olhar: o que pesa de tão importante a mulher da balança? O que diz a carta que a jovem vestida de azul lê? Porque bebe vinho, àquela hora, aquele casal?
Eis a magia de Vermeer: capta um momento e, simultaneamente, todo o ritmo da vida pessoal. Entre duas capturas estéticas torna-nos participantes da cena, cúmplices, invasores mesmo.
Sobre a vida pessoal de Vermeer, para além de dados administrativos, mais nada se sabe. Quando tentamos interrogar a sua obra, Vermeer responde-nos pintando o silêncio. Um silêncio em filigrana, leve como o algodão e suave como uma música de câmara.
Hegel, referindo-se aos pintores holandeses da época, afirma que estes pintaram aquilo que era totalmente idiossincrático de cada objeto e situação, “o grau de verdade e de perfeição” é inultrapassável. Para o filósofo alemão, os objetos abandonam-se despreocupadamente o que permite captar o momento ideal. É, na sua belíssima expressão, “o Domingo da vida que tudo iguala e que afasta toda a ideia de mal”.
Schopenhauer destaca a captura do tempo. A dita “captura”, segundo Schopenhauer, dá-se através de uma “redução” do tempo que corre a um único momento. Ao surpreender esse momento, os holandeses dão-nos acesso, por indução, a todo o tempo. Uma vez que, para Schopenhauer, o tempo “em movimento”, passe o pleonasmo, não é capturável.
O ato de escrever uma carta, e esta em si, depende totalmente da intenção e conteúdo e varia diretamente com o momento em que aquele que a escreve, bem como o seu destinatário, vivem, basta “deslocar” ligeiramente o tempo para que um texto mude de sentido. Numa época em que a troca de informação é substancialmente mais lenta, qualquer carta desencadeia um quadro de sensações que perdurarão no tempo – Vermeer procura espargir o ar circundante com as sensações que decorrem da leitura. É todo esse conjunto que Vermeer procura captar. Tenho sempre a sensação que os leitores de Vermeer não leem cartas, mas releem cartas: aquele ar concentrado de quem procura reverificar se o que leu é o que está a pensar.
Élie Faure, na sua histórica “História da Arte”, chama a Vermeer o pintor holandês que tem todas as qualidades médias de todos os outros. Mais que Rembrandt, é bem possível que Vermeer seja a tal “média perfeita” por diversos motivos, alguns óbvios, que não cabem neste espaço. Faure afirma brilhantemente que Vermeer “não tem imaginação”, limita-se a aceitar a vida totalmente como ela é, despoja-se de tudo o que se interpõe entre ele e o objeto e rende-se-lhe, limitando-se a trazê-lo aos nossos olhos. Para Faure, Rembrandt e Vermeer são dois polos da estética da época. Defenderemos, noutro trabalho de caráter diferente do presente, a escandalosa tese de que Rembrandt “não é holandês”.
Não posso deixar de mencionar a tese famosa e profunda de Théophile Thoré, segundo a qual, Vermeer não pinta objetos, pinta a luz que passa, isto é, pinta quase sempre a luz dos fins de dia e é por isso que uma estranha “sensação de tempo” exala dos quadros. Todos os quadros são um dia e a eternidade é a soma dos dias finitos e respectivos momentos de luz.
Remeto os leitores para outro artigo meu mais técnico onde procuro dar conta da listagem dos quadros “autênticos” de Vermeer. Para não maçar os leitores aqui, direi apenas que é consensual que existem trinta e quatro quadros “autênticos” de Vermeer, apenas vinte e três estão assinados e três perfeitamente datados. Tudo o que sobra é discutível.
Pode-se dizer que Vermeer é um dos maiores mistérios da história da pintura: há poucos pintores sobre os quais se saiba tão pouco.
Todo o escritor tem sempre uma concepção/visão do que é a Literatura e a sua obra é o resultado dessa visão: ou se inscreve numa dada linha e a sua obra respira a sua escola, ou é um pioneiro que procura desbravar na Literatura um novo caminho ainda não percorrido – mutatis mutandis, passa-se o mesmo com os pintores. A pintura, no entanto, é muito mais limitadora: tem um caráter mais artesanal, o trabalho e aprendizagem são feitos em coletivo e, muitas vezes, a própria produção é coletiva ou em ambiente coletivo. Espantosamente, não se sabe quem foi o mestre de Vermeer e nem se consegue perceber qual é a sua concepção de pintura. Esse é, talvez, um dos grandes segredos de Vermeer: não tem qualquer concepção do que é a pintura e limita-se a captar momentos com técnicas “normais” para a sua época.
Vermeer não tem mestre, não tem discípulos, não mantêm um diário como Delacroix, nem escreveu cartas como Van Gogh e nem sequer pintou um autorretrato. A ideia que o personagem da esquerda do “De Koppelaster” (Gemäldegulerie Alte Meister, Dresde, Alemanha), traduzido normalmente como “L’entremeteuse” e “The procuress”, é um autorretrato é muito frágil para os especialistas, mas muito agradável ao grande público. Em grande parte, a ideia fez escola com as publicações de André Malraux. Não só não é um autorretrato, como, provavelmente, nem o quadro é de Vermeer. A gigantesca maioria dos especialistas recusa a autenticidade do quadro liminarmente, a ser autêntico, como afirma, por exemplo, Pieter Svillens, seria mais um estudo-ensaio-tentativa do que “uma obra”, mas como em tudo, e sem entrar em detalhes técnicos, há, no outro extremo, nomes como o de Eduard Trautscholdt que afirmam que não só é autêntico, como é mesmo o início do verdadeiro e mais pujante Vermeer.
Vermeer cai praticamente no esquecimento e vai ter de esperar pelos seus dois salvadores: Téophile Thoré e Marcel Proust. Até ao início do século XIX, público e diktatacadêmico, faziam prevalecer as cenas grandiosas, cenas históricas e a arte de temática religiosa.
Vermeer reaparece pela mão de Etienne-Joseph-Théophile Thoré, conhecido como William Bürger, num artigo da famosa revista “Gazette des beaux-arts”.
Teóphile Thoré era advogado e crítico de arte, fundou o “La vrai République” (A verdadeira república) que foi imediatamente interditado pelo governo do general Cavaignac. Fruto de sangrentas perseguições, Téophile Thoré refugiou-se em Bruxelas e é aí que toma o pseudónimo de William Bürger. Só reentra em França em 1859.
Théophile Thoré desde o início da carreira de crítico de arte tinha sempre defendido o “realismo” em pintura, as suas grandes referências eram Jean-François Millet e Gustave Courbet. Em 1866, numa série de três artigos brilhantes publicados na “Gazette des beaux-arts” dá conta de (re)descobreta de Vermeer. Thoré tinha visitado La Haye em 1842 e, através de um catálogo ocasional, vê o totalmente desconhecido nome de Vermeer. O quadro que está em exposição é o “Gezicht op Delft” (Vista de Delt). Em coleções particulares Thoré tem a oportunidade de ver o agora famoso “a leiteira”.
Thoré dedica grande parte da sua vida à procura de obras de Vermeer. Na época, muitas obras se confundiam com as obras de Pieter de Hooch e Théophile Thoré tenta separar as águas. Thoré atribui setenta obras a Vermeer, mas as técnicas científicas desenvolvidas posteriormente e as técnicas de análise contemporâneas extremamente sofisticadas fazem esse número cair para uma lista de quarenta obras. É a Thoré que se deve a descoberta de quase dois terços das obras de Vermeer. Pode-se dizer que o mundo deve Vermeer ao extraordinário Théophile Thoré.
O outro “salvador” de Vermeer é Marcel Proust. Vermeer não é apenas uma referência estética para Marcel Proust, Vermeer está no centro de toda a concepção Proustiana de arte e do que é um escritor, chegando mesmo Proust a lançar a boutade, através de Bergotte, “escrever como Vermeer”. Não me alongo aqui sobre o assunto e remeto o leitor interessado neste eixo Vermeer-Proust para o meu ensaio no nº 2 da revista Scripsi“Proust e Vermeer”. A fama de Vermeer pelo mundo é também devida, em grande parte, à posição maior que ocupa a La Recherche du Temps Perdu [Em Busca do Tempo Perdido] na literatura universal. Relembro que um dos personagens principais, Swann, é, na obra, um especialista em pintura e que, durante a acção, escreve um trabalho sobre Vermeer. A presença de Vermeer é total se nos lembrarmos que Bergotte, a grande referência de Marcel, personagem da Recherche, morre contemplando a “Vista de Delft”.
Se é verdade que, na literatura, a facilidade de leitura é proporcional ao trabalho do autor, em Vermeer também se pode dizer que a simplicidade e facilidade que emanava da sua obra se deve a um trabalho em filigrana, os pormenores estão trabalhados até à exaustão e a aparente banalidade temática, no fundo, esconde uma grande profundidade estética e humana.
Por Frank Wan