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SOBRE A ARTE

SOBRE A ARTE

Pequeno guia para desconstruir Salvador Dalí


O Dalí que surge, quando a discussão desfaz o mito, é uma fonte rica de controvérsias: um artista egocêntrico que se valia do marketing para dar visibilidade à obra, que flertava com a ditadura de Francisco Franco e que passou a se repetir a partir dos anos 1940, pouco depois de ser expulso do movimento surrealista por seu fundador, o poeta francês André Breton.


Nascido em Figueres, na Catalunha, em 1904, Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech estudou técnicas de pintura, escultura e gravura na Real Academia de Bellas Artes de San Francisco, em Madri, por cerca de quatro anos. Mas a sua passagem pelo curso e pelo alojamento da escola, onde conheceu nomes que marcariam o mundo da arte, como o cineasta Luis Buñuel e o escritor Federico García Lorca, foi encurtada pela audácia do pintor. Pouco antes de enfrentar os exames finais, em 1926, ele foi expulso da academia por dizer que a comissão avaliadora não era qualificada o suficiente para examiná-lo. Em 1929, ele se aproximou do movimento surrealista, inaugurando a fase em que faria as suas maiores obras, como O Grande Masturbador (1929) e A Persistência da Memória (1931). Em companhia de colegas do grupo, Dalí bebeu dos estudos do psicanalista Sigmund Freud e propôs pinturas com uma abordagem do universo dos sonhos e do inconsciente. Mas não durou muito. Apenas dez anos depois, a obsessão pela figura Adolf Hitler (que mais tarde se converteria em admiração pelo fascista Francisco Franco) e o gosto pelo dinheiro (Dalí lucrava sem pudor com a sua produção, desenvolvendo trabalhos inclusive para a publicidade e a moda) renderiam a ele não apenas o apelido de Avida Dollars, um anagrama de seu nome confeccionado por Breton, mas também a saída forçada do surrealismo.


SALVADOR DALÍ ALÉM DO MITO


Marqueteiro​

Condenado pelo fundador do movimento surrealista, André Breton, por ganhar dinheiro com a venda de suas obras, e promover tanto o seu trabalho como a si mesmo, como um verdadeiro showman, Dalí era, de fato, um especialista em autopromoção. “Ele não foi o primeiro a lucrar com arte, certamente, mas foi inescrupuloso ao fazer arranjos comerciais”, diz Dawn Ades, professora emérita da Universidade de Essex, na Inglaterra, e especialista em arte surrealista. “Ele e Gala, a mulher, queriam ganhar dinheiro, sim. Dalí refinou e aperfeiçoou o comércio de seu produto, por assim dizer.”


Psicanálise

Admirador da obra de Sigmund Freud, Dalí fazia relações entre a pintura e os estudos de psicanálise. Para o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), João Augusto Frayze-Pereira, a psicanálise foi usada de modo livre por Dalí e outros surrealistas. “O uso que o movimento faz da psicanálise e das ideias de Freud é rigorosamente não-psicanalítico. Considere o inconsciente como exemplo. Por ser uma instância que escapa à consciência, ele não é passível de manipulação como os surrealistas se propunham a fazer para compor as suas obras.”



Kitsch

Se por vezes a proposta de Dalí parece não se concretizar na tela, como no caso da abordagem psicanalítica dos sonhos, que por vezes deixa a desejar, a estética do pintor também é digna de ressalvas. Para alguns, especialmente quando ele adentra a fase religiosa, após a expulsão do surrealismo, que também conta com telas um tanto bregas. Filho de mãe católica e pai ateu, Dalí pendeu para o lado paterno até a década de 1940, quando se mudou para os Estados Unidos e passou a crer em uma fusão entre o misticismo e a ciência, motivos que passou a abordar em suas pinturas. “Ninguém mais naquela época estava fazendo isso. Ele misturou elementos da natureza e ciência com religião, de forma criativa e original. Chega a causar estranheza no espectador”, diz a professora britânica Dawn Ades.


Repetição

Salvador Dalí ancorou sua obra em um universo de onde retirou os mesmos elementos para diferentes obras. A pintura A Metamorfose de Narciso (1937), por exemplo, é citada pelo professor de história da arte da Universidade de Brasília (UnB) Pedro de Andrade Alvim, por trazer algumas dessas imagens. “Alguns componentes do quadro, como a planta brotando das rachaduras do ovo, ou o tabuleiro de xadrez gigante integrado à paisagem, são exemplos daquilo que veio a se tornar o clichê surrealista, que hoje parece ingênuo e surrado”, diz.


Franquismo

Dalí deixou a Europa em 1940 e só voltou à Espanha oito anos depois com a mulher, Gala, justamente quando muitos espanhóis estavam saindo do país para fugir da ditadura fascista de Francisco Franco e demonstrar reprovação ao seu governo. Ao desembarcar, apoiou o franquismo. “Apesar de a economia da Espanha estar sendo destruída e a cultura prejudicada pelas restrições do regime, Dalí se transformou em um apoiador pleno”, escreve o americano Tim McNeese na biografia Salvador Dalí (sem edição no Brasil).


Virada — É a partir do rompimento com o movimento e de sua mudança para os Estados Unidos, em 1940, que Dalí passa a ser visto com desconfiança pela crítica. Durante essa década, ele se converteu ao catolicismo e começou a criar imagens sagradas, como em A Madona de Port Lligat(1949), em que usa técnicas tradicionais da pintura. Ambas as fases, a surrealista e a religiosa, estão em cartaz no Tomie Ohtake, em São Paulo, na mostra que reúne 218 peças do espanhol. “As obras de Dalí após a década de 1930 se transformaram ou em uma repetição kitsch de velhos temas ou em uma devoção vulgarmente pomposa”, disse o crítico de arte Robert Hughes em artigo escrito para o jornal britânico The Guardian em 2004. “Os ‘dois Dalís’ — o jovem gênio perturbador e o velho pretensioso e indecente — são a mesma pessoa. Mas um deles é uma versão corrompida e vaidosa da outra.” Para Pedro de Andrade Alvim, professor de história da arte da Universidade de Brasília (UnB), a obra de Dalí é importante para entender o surrealismo e tem um poder desconcertante no espectador, mas a repetição é um problema. “Depois de um tempo, as pessoas gostam menos das peças dele. Elas parecem ter sido feitas a partir de uma fórmula”, diz. Na opinião da pesquisadora inglesa Dawn Ades, porém, Dalí se tornou alvo da crítica por suas posições políticas e por resgatar o academicismo na pintura, em uma época marcada pela profusão de vanguardas que sacudiu a Europa nas primeiras décadas do século XX. A professora emérita da Universidade de Essex, da Inglaterra, afirma no entanto que essa corrente de pensamento está sob revisão. “Houve um tempo em que os críticos não olhavam as obras de Dalí feitas após o final da década de 1930. Mas agora há pressupostos menos rígidos de que esse tipo de pintura é inaceitável. As pessoas veem potencial nesse trabalho.” Já Camille Paglia, professora de Humanidades e Estudos Midiáticos da University of the Arts da Filadélfia, atribui o mau humor da crítica ao flerte de Dalí com a indústria da moda e do cinema. “A reputação final do pintor foi prejudicada por seu interesse pela moda e por Hollywood (algo que admiro nele) e por seu estilo de representação harmonioso, que conflitava com a ascensão do abstracionismo ao fim da Segunda Guerra Mundial”, diz Camille, autora do recém-lançado Imagens Cintilantes — Uma Viagem Através da Arte desde o Egito a ‘Star Wars’ (Apicuri). “Mas Dalí foi um poeta genial do inconsciente freudiano, com seus trocadilhos sexuais ousados, e um homem de visão alucinatória e de êxtase, herdeiro moderno do barroco italiano e ibérico.”


CINCO OBRAS DE SALVADOR DALí POR ESPECIALISTAS


'Monumento Imperial à Mulher-Menina' (1929)

“Tem um aspecto interessante, relacionado ao fato de Dalí ser um dos poucos artistas conhecidos a abordar os excrementos corporais, tema de Freud. O discurso do artista sobre o seu "método paranoico-crítico" está ligado à maneira como associações imaginativas, em princípio não-premeditadas, podem conduzi-lo a visões entre o agradável e o repulsivo. Elementos do quadro parecem tomar forma a partir da decomposição de outros, ou serem "expelidos" pelos outros. Toda pintura consiste, em certo sentido, em "sujar" uma superfície, e Dali explora isso ressaltando o contraste entre texturas que remetem ora à putrefação da matéria, ora à representação de um espaço imaculado.”


Pedro de Andrade Alvim, professor de história da arte da Universidade de Brasília (UnB)


'A Persistência da Memória' (1931)

“O tempo escorre como um queijo brie derretido. Os relógios marcam sete horas, formigas se apropriam da tampa, o dia declina, à direita uma falésia invade o horizonte e, à esquerda, a geometria combate a natureza. Dalí incorpora as paisagens metafísicas de De Chirico.”


Nelson Alfredo Aguilar, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)


'Homem com a Cabeça Cheia de Nuvens' (1936)

“É o pequeno estudo para a obra maior, Um Casal com as Cabeças Cheias de Nuvem (Boiymans Van Beuningen), homenagem a René Magritte, que foi o responsável, juntamente com Paul Eluard, pela conversão de Dalí ao surrealismo, em 1929. A nuvem é o tema magritteano por excelência, por tratar da transitoriedade em curso, do céu às voltas com as fixações terrestres. Dalí radicaliza os achados do colega belga, recortando a silhueta da personagem que se transfigura em contemplação.”


Nelson Alfredo Aguilar, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)


'A Metamorfose de Narciso' (1937)

“Uma pintura que representa Dalí no que ele tem de melhor e de pior. Mostra uma afinidade profunda com o maneirismo (séc. XVI), com o qual compartilha um domínio das técnicas de ilusionismo e anamorfose (representação distorcida) empregadas com o objetivo de fazer um exibicionismo virtuosístico dos recursos da pintura. O resultado é uma pintura cheia de artifícios, mas também de inquietação e angústia. Em 1837, essa exploração do poder sedutor da pintura e da técnica implicava um certo descompromisso ético, uma postura apocalíptica que podia ser identificada com a crueldade do fascismo. Alguns componentes do quadro, como a planta brotando das rachaduras do ovo, ou o tabuleiro de xadrez gigante integrado à paisagem, são exemplos daquilo que veio a se tornar o clichê surrealista, que hoje parece ingênuo e surrado. Entretanto, me parece que o potencial inventivo da pintura resiste a isso.”


Pedro de Andrade Alvim, professor de história da arte da Universidade de Brasília (UnB)


'Paisagem Pagã Média' (1937)

“Contempla a visão desértica cujos acidentes geográficos configuram semblantes humanos, no caso o rochedo que possui a forma do rosto de Sigmund Freud, que Dalí conheceria pessoalmente em 1938. O fundador da psicanálise comentou com um colega: ‘Nunca vi um tipo de espanhol tão perfeito. Que fanático!’”


Nelson Alfredo Aguilar, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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